Vício em apostas online: um problema em ascensão e com riscos à saúde mental

As casas de apostas online, populares ‘bets’, estão em todos os lugares. No futebol essa presença é mais marcante, já que 15 dos 20 times da primeira divisão do Campeonato Brasileiro têm patrocínio master ligado a alguma casa de apostas. Mas os anúncios de bets e do popular “jogo do tigrinho” vão muito além: são constantes em qualquer visita a uma rede social ou mesmo nos anúncios de plataformas de streaming e na programação da TV aberta. A presença é quase inescapável. 

O bombardeio publicitário é proporcional ao aumento da adesão dos brasileiros às apostas online. É o que mostra uma pesquisa feita pelo Instituto Datafolha, em dezembro de 2023, que considerou a opinião de aproximadamente dois mil brasileiros de todas as regiões do país com idade acima de 16 anos. Segundo a pesquisa, 30% dos entrevistados são a favor das bets e 15% já fizeram algum tipo de aposta online. Os principais jogadores online no Brasil são os jovens de 16 a 24 anos.

E, segundo estimativas do Banco Central, neste ano foram transferidos via Pix – todos os meses até aqui – uma variação entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões. Para se ter uma ideia, só em agosto, foram R$ 20,8 bilhões em apostas online contra R$ 1,9 bilhão em todos os sorteios de loterias da Caixa Econômica Federal.

Essa adesão aos jogos online com a massificação das bets tem trazido um efeito colateral relevante do ponto de vista da saúde pública: o vício em jogos e os perigos à saúde mental. O jogo patológico ou ludopatia é um transtorno psiquiátrico caracterizado pela compulsão em realizar apostas, mesmo diante de prejuízos financeiros e emocionais significativos. A doença é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde de 2018 e é registrada na Classificação Internacional de Doenças (CID) como CID 10-F63.0 (jogo patológico) e CID 10-Z72.6 (mania de jogo e apostas). O Ministério da Saúde aponta que o número de pessoas com dificuldades de parar de apostar tem aumentado rapidamente nos últimos anos e que 1,5% da população do país sofre de algum transtorno relacionado ao vício em apostas. 

Como o vício em jogo afeta o cérebro

Além do aspecto financeiro, há também o impacto para a saúde mental e emocional. É comum, por exemplo, que essas pessoas já sofram de outras condições psiquiátricas concomitantes. “Algumas das comorbidades mais comuns incluem: transtornos de humor, como a depressão e o transtorno afetivo bipolar; transtornos de ansiedade muitas vezes exacerbados pelo estresse e pelas dificuldades financeiras associadas ao jogo; outros transtornos de dependência – como por álcool e drogas – que potencializam os efeitos negativos do jogo; o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) uma vez que a impulsividade e a dificuldade de concentração podem aumentar a predisposição ao vício em jogos de azar”, afirma Alaor Carlos de Oliveira Neto, Head do Serviço de Psiquiatria do Hospital Alemão Oswaldo Cruz.

A sensação de euforia ao apostar e a expectativa de ganhos rápidos ativam as mesmas áreas do cérebro envolvidas no vício em álcool e outras drogas. Isso acontece devido à liberação de dopamina, um neurotransmissor que provoca sensações de prazer e satisfação. Esse processo ativa o sistema de recompensa do cérebro, criando um ciclo vicioso de perdas e apostas repetidas que dificultam ainda mais o rompimento do comportamento destrutivo, que pode piorar com o tempo e, em casos mais graves, levar a ideações suicidas.

Oliveira Neto também pontua como algumas áreas do cérebro são afetadas e como reagem quando são estimuladas por meio dos jogos online: “O córtex pré-frontal é afetado levando a decisões impulsivas e dificuldade em resistir à vontade de jogar, mesmo com consequências negativas. O hipocampo fortalece as lembranças das vitórias e minimiza as derrotas, criando uma visão distorcida da realidade e reforçando o comportamento viciante. A amígdala (nesse caso, nos referimos a uma parte do cérebro que também tem esse nome, e não à região mais conhecida, que fica no início da garganta) torna-se mais ativa, gerando ansiedade e irritabilidade quando a pessoa não está jogando, o que a leva a buscar o jogo para aliviar esses sentimentos”.

Será que estou viciado em jogos?

É comum entre quem já começou a aderir aos jogos online que haja essa dúvida. Oliveira Neto aponta os indícios que podem sugerir esse transtorno: “Os sinais mais claros de que o jogo transformou-se em um problema de saúde é quando o indivíduo passa a apresentar impacto negativo no trabalho, nos estudos e nos relacionamentos interpessoais em decorrência do tempo dedicado ao jogo ou nas consequências deletérias de jogar”. 

Segundo Oliveira Neto, o sinal amarelo aparece “quando você passa, por exemplo, a maior parte do tempo livre jogando, negligenciando outras atividades e responsabilidades. Quando se mostra incapaz de reduzir o tempo de jogo, apesar de reconhecer a necessidade para tal”.

O impacto econômico e psicossocial

Os impactos não se resumem exclusivamente à questão financeira, embora as dívidas sejam comuns. Em pesquisa realizada pelo instituto Locomotiva e divulgada no portal E-Investidor em agosto deste ano, foi constatado que 86% das pessoas que apostam estão endividadas e 64% estão negativadas no Serasa. Muitas delas acabam usando todo o salário, economias e até adquirem empréstimos para continuar apostando, o que gera um efeito dominó, com problemas que se espalham para a vida familiar e social.

Além disso, frequentemente o transtorno leva ao isolamento social, à medida que o comportamento se torna cada vez mais compulsivo. Apostadores patológicos tendem a se afastar de familiares e amigos, trocando tempo de convívio pelo jogo. Esse afastamento se evidencia, de acordo com Oliveira Neto, “quando o jogador fica irritado, ansioso ou deprimido se não está jogando ou quando passa a mentir para justificar o tempo gasto jogando ou os gastos com jogos. Outros sintomas de afastamento ocorrem quando há gastos excessivos e problemas para honrar compromissos financeiros”.

Como prevenir e tratar o vício em jogos e apostas online

A prevenção começa pela conscientização e pela busca de hábitos saudáveis que possam substituir o comportamento de risco. Estabelecer limites claros de tempo e aportes financeiros para o jogo, evitar o acesso frequente a sites de apostas e manter-se conectado a atividades sociais e familiares são estratégias essenciais.

Uma vez que houver desconfiança de que você, um familiar ou alguma pessoa próxima tem vício em jogos (online ou não), o tratamento geralmente envolve uma combinação de abordagens. Segundo Oliveira Neto, essa solução multidisciplinar envolve “tratamento psicoterápico (individual e em grupo), que auxiliará o indivíduo a identificar as causas subjacentes do vício, além do tratamento médico, que pode constar do uso de medicamentos para tratar condições coexistentes e que podem contribuir para o hábito do jogo patológico.”

É importante procurar auxílio o mais cedo possível. “O tratamento precoce aumenta as chances de recuperação e evita consequências graves. Portanto, é fundamental procurar ajuda por meio de profissionais especializados e grupos de apoio como o Jogadores Anônimos caso você ou algum conhecido esteja com problemas com a prática de jogo patológico”, completa Oliveira Neto. Com o apoio certo e o reconhecimento do problema, é possível retomar o controle da vida, resgatar a autoestima e construir um futuro livre do vício. A mudança começa com o primeiro passo e, com ele, a esperança de dias melhores.

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