
Nosso sistema imunológico produz anticorpos contra células estranhas para nos proteger de doenças e infecções. Porém, por motivos variados e nem sempre esclarecidos, ele pode se confundir e atacar nossas células saudáveis também, provocando o que chamamos de doenças autoimunes.
A gravidade de uma doença autoimune depende dos órgãos afetados. Por exemplo, a tireoidite de Hashimoto é uma doença praticamente restrita à glândula tireoide, que é um órgão importante, mas não é vital. Os pacientes conseguem levar uma vida normal apenas tomando um comprimido por dia de hormônio tireoidiano, por exemplo.
Outras, porém, são mais graves, como as que atingem órgãos ou o sistema nervoso central, coração, pulmões ou vasos sanguíneos. O lúpus eritematoso sistêmico, por exemplo, é uma doença autoimune que afeta todo o corpo.
“É importante comentar que o modo como as doenças se apresentam clinicamente varia bastante. Essa característica requer uma abordagem individual e multidisciplinar”, pontua o reumatologista Ubirajara Pirillo Canabarro, do Núcleo de Doenças Autoimunes do Hospital Mãe de Deus.
O que pode causar doenças autoimunes?
Não se sabe exatamente o que faz nosso sistema imunológico falhar. No entanto, algumas pessoas são mais propensas a apresentar doença autoimune do que outras. Aqui estão alguns fatores que podem contribuir para aumentar o risco:
Gênero: pessoas designadas como mulheres ao nascer, entre 15 e 44 anos, têm maior probabilidade de desenvolver uma doença autoimune do que as pessoas designadas como homens ao nascer, de acordo com estudo publicado no Frontiers Neuroendocrinology, em 2014.
Histórico familiar: você pode ter maior probabilidade de desenvolver doenças autoimunes devido a genes herdados, embora fatores ambientais também possam contribuir.
Fatores ambientais: a exposição à luz solar, mercúrio, produtos químicos como solventes ou usados na agricultura, fumaça de cigarro ou certas infecções bacterianas e virais, incluindo Covid-19, podem aumentar o risco de doença autoimune.
Etnia: algumas doenças autoimunes são mais comuns em pessoas de determinados grupos. Por exemplo, os brancos da Europa e dos Estados Unidos podem ter maior probabilidade de desenvolver doenças musculares autoimunes, enquanto o lúpus tende a ocorrer mais em pessoas afro-americanas, hispânicas ou latinas.
Alimentação: a dieta e nutrientes que consumimos podem afetar o risco e a gravidade da doença.
Outras condições de saúde, incluindo obesidade e ainda outras doenças autoimunes, podem tornar uma pessoa mais propensa a desenvolver uma doença autoimune.
Os sintomas comuns de uma doença autoimune
Diferentes doenças autoimunes podem ter sintomas iniciais semelhantes, como:
- fadiga
- tontura ou atordoamento
- febre baixa
- dores musculares
- inchaço
- problemas de concentração
- dormência e formigamento nas mãos e pés
- perda de cabelo
- erupção cutânea
Em alguns casos, como na psoríase ou na artrite reumatóide (AR), os sintomas podem ir e vir. Um período de sintomas é chamado de surto e, quando eles desaparecem, chamamos de remissão.
Doenças autoimunes também podem ter sintomas próprios, dependendo dos sistemas afetados. Por exemplo, com no diabetes tipo 1: sede extrema ou perda de peso é algo comum. Já a doença inflamatória intestinal (DII) pode causar inchaço abdominal e diarreia.
Diagnóstico
Ainda hoje desafiador, o diagnóstico precoce é fundamental para a preservação da saúde dos pacientes. “As terapias medicamentosas ou não medicamentosas, corretamente indicadas dentro do tratamento, são as melhores ferramentas para o controle da doença e a preservação da saúde”, explica o reumatologista.
“Pacientes com uma doença autoimune têm uma maior probabilidade de desenvolver outras patologias desse tipo e, frequentemente, elas acometem diversos órgãos e tecidos. Portanto, a complexidade das doenças e as tecnologias envolvidas no diagnóstico e no tratamento tornam o manejo dos pacientes um processo crônico e multidisciplinar”, diz Canabarro.
As doenças autoimunes mais comuns
Pesquisadores identificaram mais de 100 doenças autoimunes. Aqui listamos as mais comuns:
Diabetes tipo 1
Segundo cálculos da Organização Mundial da Saúde (OMS), o diabetes atinge mais de 250 milhões de pessoas ao redor do mundo. Mas apenas uma pequena parte desse total – algo entre 5 e 10% – sofre do tipo 1.
Os anticorpos do doente não reconhecem o pâncreas como parte do corpo. Seu sistema imunológico, então, ataca o órgão a ponto de ele perder sua função principal, que é produzir insulina. Esse hormônio ajuda a regular os níveis de açúcar no sangue, transformando carboidratos e açúcares em energia.
O alto nível de açúcar no sangue devido ao diabetes tipo 1 pode danificar os vasos sanguíneos e os órgãos.
Artrite reumatoide
Na artrite reumatoide, o sistema imunológico ataca as articulações. Essa inflamação também é provocada por alterações no sistema de defesa do organismo, causando sintomas como inchaço, dor e rigidez nas áreas afetadas.
A doença afeta duas vezes mais as mulheres do que os homens entre 50 e 70 anos, mas pode se manifestar em ambos os sexos e em qualquer idade. Com o passar do tempo, a inflamação causada pela artrite reumatoide pode levar à erosão do osso e deformidade da articulação.
Embora ainda não se conheçam os recursos para a cura definitiva, é possível obter a remissão dos sintomas, preservar a capacidade funcional e evitar a progressão das deformidades.
Psoríase/artrite psoriática
A psoríase é uma doença crônica da pele, não contagiosa, caracterizada pela presença de manchas róseas ou avermelhadas, recobertas por escamas esbranquiçadas. Sua causa é ainda desconhecida e, embora exista uma predisposição familiar, não é necessariamente transmitida aos descendentes.
Na psoríase, as células da pele se acumulam e formam escamas e manchas secas que causam coceira. Os gatilhos que desencadeiam a doença incluem infecções, estresse e frio. É importante ressaltar: a doença não é contagiosa e o contato com pacientes não precisa ser evitado.
Em até 30% das pessoas, uma inflamação similar pode acontecer nas articulações, levando à artrite psoriásica, outra tipo de manifestação da doença.
Em casos de psoríase leve, pode haver apenas um desconforto por causa dos sintomas, mas nos casos mais graves, pode ser dolorosa e provocar alterações que impactam significativamente na qualidade de vida e na autoestima do paciente.
Esclerose múltipla
Na origem da doença está uma reação autoimune: produção de anticorpos que atacam as chamadas bainhas de mielina, o revestimento protetor que envolve as células nervosas e são responsáveis por levar os impulsos nervosos de um neurônio para outro.
Este dano pode levar a dormência, fraqueza, problemas de equilíbrio, problemas para andar e tremores involuntários. A esclerose múltipla costuma aparecer entre os 20 e os 40 anos de idade. Com a evolução da doença, o sistema nervoso central vai acumulando “cicatrizes”, que acabam afetando a audição, a visão, a memória e coordenação motora.
Sabe-se que histórico na família eleva em 10 vezes o risco de desenvolver a patologia. Isso sugere que o mal, pelo menos em parte, pode ter uma explicação genética. Cerca de 70% das vítimas são mulheres, mas os cientistas não compreendem o fato.
Lúpus
O lúpus eritematoso sistêmico, como é chamado pelos cientistas, tem potencial para afetar qualquer parte do corpo. É por isso que os médicos acabam confundindo seus sintomas com os de outras doenças.
Trata-se de uma enfermidade inflamatória: o sistema imunológico do paciente produz anticorpos que atacam as células e tecidos de seus próprios órgãos, provocando a inflamação. Em situações mais graves e raras (menos de 1% dos casos), o mal pode levar a alucinações e comportamentos psicóticos. A evolução da doença é imprevisível, com períodos de sofrimento e melhoria que se alternam constantemente. E não há cura.
O lúpus é cercado de mistério. Sabe-se, por exemplo, que 90% das vítimas são mulheres, e que 80% delas desenvolvem a doença na fase mais produtiva da vida, entre os 15 e os 45 anos. Por quê? A ciência ainda não encontrou a resposta. Acredita-se que a doença tenha um componente genético em sua origem, já que é comum o registro de múltiplos casos dentro de uma mesma família.
O incentivo aos estudos científicos
Ubirajara Canabarro explica também que, nos últimos anos, experimentamos um grande avanço no entendimento de como as doenças autoimunes se desenvolvem e os mecanismos envolvidos na sua perpetuação. “Paralelamente, as ferramentas terapêuticas tornaram-se mais efetivas e toleráveis. Esses fatos colaboraram para a elaboração de diagnósticos mais precoces e de tratamentos mais eficientes”, diz.