
Foram dois meses de trabalho com a população local, atendendo mais de 100 pessoas por dia, tempo e experiência suficientes para me causar um enorme sentimento de frustração. Primeiro, porque o conhecimento adquirido na faculdade pouco servia naquele momento, uma vez que não havia recursos necessários para diagnosticar e tratar adequadamente os doentes. As condições de higiene e saneamento básico eram extremamente precários, o que piorava ainda mais a situação.
Essa decepção, porém, tinha mais um motivo: o desperdício de recursos, a ineficiência da gestão da Saúde, e tudo isso em condições extremas. Havia posto de saúde recentemente construído, mas de portas fechadas, sem ninguém para atender. Por diversas vezes, me deparei com medicamentos vencidos, equipamentos enferrujados e estruturas sem o mínimo de preparo para manter aquele patrimônio.
Isso foi em 1979, mas situações como as que testemunhei em Abaiara continuam hoje, mais de três décadas depois, a compor grande parte da realidade do Brasil.
Como disse em artigo recente publicado no UOL e tenho enfatizado com recorrência, a corrupção certamente nutre as fraquezas do modelo de Saúde brasileiro e deve ser combatida como uma doença letal. No entanto, segundo estudos da Organização Mundial de Saúde (OMS), ela é responsável por algo em torno de 10% do desperdício total verificado no setor. Temos, pelo menos, outras nove falhas para solucionar, se considerarmos que o mesmo estudo aponta outras possíveis 10 causas da ineficiência na Saúde. Entre elas, a utilização imprópria de materiais, a prescrição inadequada de medicamentos e processos de gestão defasados, que tornam o sistema mais lento e ineficaz.
Tais problemas podem prejudicar até mesmo as melhores intenções. O Rotary, por exemplo, promoveu campanhas humanitárias, desde a década de 80, que ajudaram a erradicar a poliomielite no mundo. Hoje, existem entidades de igual seriedade que, por exemplo, lutam pela prevenção do câncer de mama, o de maior índice de mortalidade entre o sexo feminino, evangelizando a mulher para a importância de fazer mamografia periodicamente. Não há dúvidas sobre o impacto positivo dessas ações, que incluem até a doação de equipamentos de mamografia para auxiliar na realização desses exames. Só que, muitas vezes, as máquinas são destinadas a locais onde não há gente capacitada para operá-las, ou faltam recursos para seu uso e manutenção. Eventualmente, sequer saem da caixa.
Ineficiência também é desperdício. Dos mais cruéis.
Voltei várias vezes para o Ceará e outras partes do Nordeste; nunca para Abaiara. Mas posso supor que, nesses anos todos, pouco tenha evoluído, se é que evoluiu, em termos de qualidade de mão de obra e processos. O Brasil ainda não conseguiu levar civilização a esses locais, e quem depende desse modelo – pacientes, médicos e outros agentes da Saúde – muitas vezes faz escolhas menos técnicas e profissionais por não ter uma política sanitária organizada e estruturada, e com financiamento adequado.
Quem pode culpá-los por suas escolhas?
Eu, não. O melhor que podemos e devemos fazer pela Saúde é acreditar nas mudanças e em nosso poder de realizá-las, mesmo que sejam necessários mais 10, 20, 30 anos. Mesmo decepcionados. Mesmo indignados.